sábado, 13 de agosto de 2011

Ao meu pai


Oito de Agosto de mil novecentos e oitenta e quatro. Rua Prudente de Moraes, oitocentos e quarenta e nove, fundos, Dois Córregos. Casa simples, a porta que existia, era fechada à tramela e nos quartos, cortinas produzidas pela Dona Julieta dava a privacidade necessária. Da cama, vislumbrávamos o madeiramento, o telhado e às vezes o céu,  sem obstáculos. No quarto pequeno, uma simples cama de casal  escondendo a comadre e o urinol e a penteadeira tomada pelos remédios e água. O criado-mudo apoiava o rádio, sempre sintonizado em ondas curtas, o maço de Continental, a caixa de fósforos e o cinzeiro sempre limpo. Dezoito horas. A Ave Maria, entoada em algumas emissoras até hoje, chegava ao "agora e na hora de nossa morte", acompanhada por movimentos labiais acanhados e os olhos, já dispersos e marejados, deixaram rolar uma lágrima, exatamente no momento do "amém", seguido pelo esvaziamento definitivo do tronco e pela midríase, concluíndo o desenlaçe imediato.
Quarenta e três anos vividos em grande parte, em nosocômios.  Amaral Carvalho, São Judas e Abdalla Atique eram nomes que ouvia frequentemente, sabendo anos depois tratarem-se de hospitais na cidade de Jaú e um médico que o tratava, respectivamente . Seis cirurgias no estômago mais uma no fêmur direito fraturado em uma queda, totalizando sete.
Nos períodos de convalescência em casa, muitas pessoas o procuravam para buscar orientações e indicações sobre aposentadoria e saíam dali contentes, deixando-o exausto mas realizado.
Profissional de administração, mais precisamente contabilidade, foi conquistado pelo alcoolismo e o tabagismo, que o fizeram aposentar-se muito cedo, por invalidez. Invalidez. Esse termo grosseiro até hoje utilizado para definir uma condição relativa, mas não uma disposição, somava-se à falta de conhecimento da área psicossocial, a praticamente inexistência da terapia ocupacional e a dificuldade de expor sentimentos que fizeram-no enredar-se no vício de forma a ser dominado por ele, sucumbindo.
Apesar de tudo, nada apaga as conversas variadas na cama, esperando a Dona Julieta chegar da Barra, as batatinhas fritas, cortadas em rodelas bem fininhas uma a uma com aquela faquinha de serra, mergulhadas em salmoura durante cinco minutos ( tinha que ser cinco minutos, nem mais nem menos) e secas em guardanapos de pano que tinham que ser lavados antes da matriarca chegar, a fim de evitar broncas carinhosas.
Outra passagem inesquecível é a de quando a Dona Julieta, minha mãe, cabeleireira oficial da vizinhança, resignada como sempre, ouvia uma freguesa reclamar da demora e ameaçando não voltar mais no salãozinho (era assim que era chamado, no diminutivo mesmo) quando o seu Luis, meu pai, no meio da empreitada da lavagem da louça do almoço, com um prato todo ensaboado na mão esquerda e a bucha também ensaboada na direita esbravejou: -"Faça o favor de se retirar então e não apareça mais aqui se for para faltar com a educação com minha esposa, pois sou eu quem manda aqui e não vou mais deixar a Julieta lhe atender!". Dá para imaginar a cena, não é? Foi demais!

"Faça o que eu mando. Não faça o que eu faço" ele dizia com o olhar sério e doce.

Meu pai, meu mestre, Deus te guarde. Especialmente nesta época em que os pais são recordados pelos filhos, que os brindam com presentes.
Meus irmãos e eu te brindamos com a prece da nossa gratidão:

Senhor LUIZ VALDOMIRO GAMBA,
Obrigado por nos terdes dado a vida,
Obrigado por nos terdes ensinado a bem vivê-la.

Em homenagem ao senhor, publico essas linhas.

Bauru, 13 de agosto de 2011

Seu caçula
Maurilio Flavio Gamba